segunda-feira, 5 de maio de 2014

Croniquinha 6: Mundo em Transformação

Eu nasci em 1966, cresci em um lar com valores distintos e, de alguma forma, complementares. Meu pai respirou a ditadura militar. Vestia seus filhos como soldados. Nossas roupas eram uniformes e nosso corte de cabelo nos deixava com a aparência de recrutas mirins. Ele nos levava para conhecer os equipamentos bélicos nas anuais ExpoEx, e para assistir ao desfile militar todo sete de setembro.

Ele não era a favor da violência gratuita, mas acreditava que o uso da força coibia a anarquia, a desordem social. Minha mãe sempre foi muito religiosa, e se preocupava em ensinar aos filhos o caminho que leva à comunhão com Deus; a conhecer seu amor e sua ampla capacidade de exercer misericórdia para com a humanidade pecadora. Por isso, não cabia a ninguém julgar seu próximo, pois não havia um justo suficientemente qualificado para isso. O julgamento cabe a Deus. Ao homem, fica a responsabilidade de zelar pela respeito às leis e à moral para que haja uma sociedade mais respeitável, honesta e pacífica.

Conheci um mundo bem diferente do que vejo hoje. As pessoas lutaram por liberdade e conquistaram muito do que defenderam. Só não sei dizer qual dos mundos vividos foi o melhor. O rock nroll veio como uma avalanche na década de 60. Beatles, Elvis Presley, Cely Campelo, Roberto Carlos. Dança e ritmo transgressores, juventude transviada. Ser rebelde era o mote. No entanto, jovem solteira engravidar era vergonha para a família. Desrespeitar os idosos era algo abominável. Pobre não era sinônimo de delinquente, pois havia honra e dignidade como valores para os de condição humilde que moravam na periferia e nos morros.

Meu pai odiava os cabeludos, os que se vestiam desleixadamente, que andavam arrastando os pés ou falavam gírias. Segundo ele, não eram bons cidadãos, mas uma ameaça à moral e aos bons costumes. Algum tempo depois, já estava comprando o LP do cabeludo RC para tocar na vitrola junto com Nelson Gonçalves. O mundo muda porque as cabeças mudam.

Nos anos 70, com a invenção da pílula anticoncepcional, o comportamento sexual da mulher passou por uma mudança inimaginável. A televisão, esse poderoso meio de comunicação emergente, apropriou-se muito bem dessa mudança, dando a ela um tom libertário. Eu era uma criança, apenas uma criança protegida deste mundo pela censura doméstica quanto ao que era ou não lícito assistir. As roupas femininas ficaram mais curtas, justas e decotadas. Ainda assim, havia um momento de transição e um choque cultural de forte intensidade. Mulheres com esse comportamento não mereciam respeito, assemelhavam-se às que vendiam o corpo nos becos escuros da boemia.

Eu estudei em escola pública. Na época, era o melhor ensino disponível. Estudar em escola particular era vergonhoso. Acreditava-se que essas escolas eram vias de escape para jovens indolentes de pais abastados. Não precisava muito esforço para passar de ano, o dinheiro supria essa carência. Lembro-me das cansativas aulas de moral e cívica, hoje extintas. Também tínhamos aulas complementares de formação para música, trabalhos manuais e atividades administrativas, com uso de formulários contábeis. Além do Inglês, tive aula de Francês. Os professores eram muito respeitados e tinham autoridade para disciplinar os alunos, com o aval dos próprios pais. Presenciei alguns exageros, uso da violência e da disciplina vexatória. Hoje, uma realidade desconhecida e não tolerada. Atualmente, professores são vistos como serviçais que devem suportar toda forma de rebeldia e desrespeito em silêncio para preservar o emprego e, pior ainda, muitas vezes a própria vida.

Os anos 70 e 80 deram muita ênfase ao cigarro. Era rito de passagem e sinônimo de determinação. Grande poder da propaganda! Jovens felizes, atletas, homens valentes, viris, sedutores, montados em cavalos de pelo porte. Um lucrativo negócio e uma grande fonte de arrecadação de impostos. Logo vieram os efeitos colaterais com saúde agravada e morte prematura. Os legisladores trataram de bloquear a propaganda enganosa, mas preservando o direito de escolha de cada um. Acho que o cigarro foi o precursor das drogas.

A música sempre foi uma influência para a sociedade e um eco dela. Nos anos 70, ela enfrentou metaforicamente a censura com letras muito bem construídas para a MBP. Grandes nomes despontaram nos festivais e prepararam o terreno para que seus filhos os questionassem nos anos 80 com o “Rock cabeça”. Bandas surgiram como a voz da juventude reprimida, era o dualismo cego da "geração Coca-Cola" com seu controverso grito de liberdade. Eis uma questão complexa de se resolver: como uma geração se opõe ao poder instituído e a geração sucessora se opõe ao seu modo de ver o mundo? Parece que a busca pela liberdade faz com que uma geração dê as costas para a outra, abandonando até mesmo o que havia de bom nela.

Lembro-me da sociedade alternativa, dos hippies, de Woodstock, e do legado que deixaram para a geração seguinte. Tudo tem um preço a se pagar nesta vida. Com o passar do tempo, aqueles jovens viraram capitalistas e ocuparam o espaço daqueles de quem discordavam para agir de alguma forma do mesmo jeito, mas com outro discurso. Seus filhos não foram reprimidos quanto a fazer o que causaria danos a si mesmo e a outros, e o mundo em movimento foi se transformando.

Vieram com grande força as drogas psicotrópicas nos anos 70, tornaram-se mais fortes nos anos 80 e sem controle daí para adiante. As malditas drogas que oferecem grandes viagens psicodélicas destruíram a nossa juventude. O crime assumiu uma nova cara, organizou-se no tráfico e em facções rivais. Um comércio ilegal e lucrativo permeando todas as classes sociais.

Mas, para que o crime tome corpo, é preciso que existam corruptores e corruptíveis. Os novos intelectuais, aqueles jovens dos anos 70 e 80, abraçaram a causa e começaram a viver uma vida dupla, sustentando o crime e a própria dependência e, ao mesmo tempo, pregando a repressão ao que é contra a lei. Ricos e poderosos, esqueceram-se das novas gerações, hoje vítimas de uma realidade destrutiva e protagonistas de um mundo superficial e amoral. “Seus heróis morreram de overdose” e seus “amigos” “estão no poder”.

Os velhos jovens ocuparam cargos políticos, viraram empresários, assumiram o espaço midiático e propagaram um novo conceito de vida. Seus filhos e seus netos carregam consigo esse legado. Hoje, somos tecnologicamente avançados, mas perdemos o respeito mútuo, a estrutura familiar e a segurança pública. As gerações dos anos 90 e dois mil nasceram sob um prisma multifacetado, globalizado, de relações superficiais e egocêntricas. São as gerações Bill Gates e Steve Jobs, X e Y, conectadas em redes virtuais e desconectadas do mundo real.

E o que dizer da pornografia? É certo que ela sempre existiu, e que a hipocrisia social mantinha esse aspecto da natureza humana velado, oculto dos olhos inocentes de uma criança. Só que nossas crianças perderam a fase pueril e mergulharam no mundo da sexualidade adulta sem limites. Seria ter uma visão muito curta não acreditar que o aumento do número de estupros, pedofilia, e gravidez na adolescência não está associado ao zoomorfismo do sexo e ao consumo de drogas? Certamente que sim.

Nossas crianças falam como adultos, pensam como adultos, vivem como adultos, sem a menor noção do que isso significa. Disse Oswaldo Montenegro em uma de suas canções: "Nossa geração não quer sonhar, pois que sonhe a que há de vir." Infelizmente, um desejo ainda não realizado e algo que o Google não tem permitido que aconteça. Voltando ao assunto da pornografia, como uma droga viciadora que provoca o desejo de consumo de outra ainda mais pesada, vieram os vídeos bizarros de sadomasoquismo, de sexo grupal, de incesto, de estupro coletivo, de relação entre pessoas do mesmo sexo, de bestialidade. Com tanta exposição ao que não é natural, não nos surpreende que as mulheres e as crianças sejam vistas por seus predadores como mero objeto de satisfação dos seus desejos mais sombrios e nefastos. Muitos desses monstros modernos foram um dia pais e avós amorosos, bons chefes de família, cidadãos honrados.

A música mudou, empobreceu sua estrutura de versificação e depravou-se. A dança deixou de ser algo animado, romântico, exuberante, para se transformar em um ritual de acasalamento. A televisão está cada vez mais apelativa, pois precisa concorrer com o lado sombrio da Internet. Ladrões não mais se satisfazem em subtrair os bens de suas vítimas, é preciso humilhá-las, seviciá-las e tirar delas o que têm de mais precioso, a própria vida. Então, que mundo é o melhor? O da repressão ou o da liberdade sem responsabilidade? Estou inclinado a crer que nenhum dos dois, pois o primeiro era como uma bomba construída para armazenar um poder destrutivo, e o segundo, a detonação dela.

Carlos Bianchi de Oliveira
Rio de Janeiro, 05 de maio de 2014